#OFF-STAGE #11 - Desligar Também é Trabalho
Pela primeira vez em dez anos de BANTUMEN – sim, DEZ ANOS, caramba! – estou de férias.
E quando digo férias, não estou a falar daquela farsa com o portátil em stand by na mochila, emails acumulados a serem respondidos à noite e lembretes a assombrar o iPhone com fantasmas de tarefas por fazer. Não. Estou a falar de férias a sério.
Desta vez, a mochila foi sem o Mac. Só o iPad e o iPhone, e, juro pela minha sanidade mental, nenhum plano de trabalho. Estou em Palma de Maiorca. Sol, praia, e um compromisso sagrado: não trabalhar. Parece simples, não é? Para um workaholic como eu, é quase um crime.
Esta viagem não é só um descanso. É uma declaração. Uma decisão consciente de cuidar do meu tempo, do meu corpo, da minha cabeça. É a porra de uma epifania: o mundo não colapsa quando eu paro. E, pasmem, descansar também é uma forma de continuar a lutar.
Mas como é que este milagre aconteceu? Tudo começou com um voo atrasado. A última vez que estive em Lisboa, para o aniversário da BANTUMEN – aquele especial Angola com o Phedilson, lembram-se? – o meu voo de regresso a Paris atrasou. Estava marcado para as 5h30 da manhã e foi cancelado para o dia seguinte. A Air France, na sua infinita (e rara) generosidade, atirou-me um voucher de 700€.
E o que faz um workaholic com um voucher de 700€? Marca férias, claro! Pelo menos foi o que me disseram para fazer. Vi umas fotos da Yolanda Tati em Palma de Maiorca no Instagram – sim, eu também caio nestas armadilhas juntei o voucher às milhas que tinha e aos pontos da Revolut, e, de repente, tinha umas férias marcadas.
Sozinho? Sim, sozinho. Primeiro, porque ninguém mais tinha vouchers da Air France e pontos na Revolut “a dar com um pau”. E como sou filho único, parti para Maiorca sem olhar para trás. Bem, talvez tenha olhado umas cinco ou seis vezes para o email antes de embarcar, só para ter a certeza de que não estava a cometer um erro capital.
A maior dificuldade foi mesmo mentalizar-me de que ia de férias. Eu nunca tinha saído sem o meu pequeno MacBook. Nunca tive sequer o luxo de ter aquele email de resposta automática que diz “Estou ausente até ao dia X. Para qualquer urgência, falem com a Vanessa.” Parecia que estava a cometer um crime contra a produtividade.
E como se o universo quisesse testar a minha determinação, lá veio outro atraso da Air France. O voo estava marcado para as 13h e só saiu às 16h30. Escala em Portugal e cheguei a Maiorca por volta da meia-noite e meia. Táxi até ao hotel: 35€. E é aqui que começa a minha história triste com as línguas. Eu não falo nenhuma outra língua além do português, mas desenrasco-me no francês, no inglês, e sei dizer “cariño” em espanhol. E acreditem, houve vezes em que na mesma frase incluí francês, inglês, espanhol e português. Como faço isto? Também não sei explicar, mas deu para me safar. Chamem-lhe o “método Eddie de comunicação internacional” patente pendente, claro.
Palma de Maiorca é uma ilha fascinante. Com cerca de 3.640 km², é significativamente maior que a ilha de São Tomé (859 km²) e faz o Mussulo em Luanda (9 km²) parecer um grão de areia. Comparada com as ilhas de Cabo Verde, como Santiago (991 km²), Maiorca é um gigante. Mesmo em relação a São Miguel nos Açores (747 km²), a diferença é notável.
Mas o que realmente me impressionou não foi o tamanho, mas a organização. O sistema de transportes públicos de Maiorca é simplesmente incrível. Autocarros pontuais, limpos e que te levam literalmente a qualquer canto da ilha. Para um angolano habituado a táxis coletivos de Luanda, engarrafamentos épicos de Paris, e as greves de Lisboa, isto parecia magia negra.
Com um passe de 15€ por 10 viagens, consegui fazer umas 18 ou 19 deslocações para seguir o itinerário que tinha meticulosamente planeado na aplicação TripAdvisor. Imaginem só eu, que em Paris ainda me perco entre Châtelet e Les Halles depois de viver lá há 4 anos, a navegar tranquilamente por uma ilha inteira com Google Maps, que se revelou extraordinariamente eficaz a mostrar horários precisos e percursos dos transportes públicos. É o tipo de coisa que te faz questionar a tua própria inteligência.
Caló des Moro – Meu Deus, que lugar! Uma pequena enseada escondida entre falésias imponentes, com água tão azul e cristalina que parece photoshopada. O acesso não é fácil – uma caminhada de 15 minutos por trilhos rochosos que te fazem suar como um porco – mas quando chegas lá, percebes que valeu cada gota de suor. Fiquei ali, sentado numa rocha, a contemplar o mar durante quase duas horas. Sem email, sem notificações, só eu e aquela vista de cortar a respiração. Um momento de paz que me fez esquecer que a minha vida é um caos organizado.
Cala Llombards – Esta praia tem uma personalidade própria. Areia branca e fina que parece farinha, água turquesa e uma atmosfera familiar. O que me encantou foi ver como as famílias locais aproveitam o espaço: avós, pais e crianças, todos juntos, a partilhar comida caseira e histórias. Fez-me pensar em como nós, na correria do dia a dia, perdemos estes momentos simples de conexão. É o tipo de cena que te faz querer ter uma família grande, só para poder replicar aquilo.
Port de Soller não é exatamente uma praia, mas um porto pitoresco rodeado de montanhas. Cheguei lá ao pôr-do-sol, depois de um dia a explorar Soller e Fornalutx. Sentei-me num pequeno restaurante à beira-mar, pedi uma Coca-Cola Zero com muito gelo – porque até nas férias a dieta assombra e assisti ao espetáculo do sol a mergulhar no mar enquanto uma família de asiáticos fazia conteúdo para as redes sociais. Foi nesse momento que percebi que já não verificava o email há mais de 24 horas e o mundo não tinha acabado. Pequenas vitórias, meus amigos. Pequenas vitórias.
Valldemossa é uma vila de montanha que parece saída de um conto de fadas. Ruas de pedra estreitas, casas com vasos de flores coloridas nas janelas, e uma tranquilidade que é quase palpável. Foi aqui que Bruno Zupan e Josep Coll Bardolet viveram e percebe-se porquê. Há uma energia criativa no ar. Sentei-me num café na praça principal, pedi um café con leche (das poucas expressões em espanhol que aprendi, e que me salvou a vida) e observei a vida local a desenrolar-se. Ninguém com pressa, ninguém colado ao telemóvel, apenas pessoas a viver o momento. É quase alienígena.
Oh Deià, Deià... Se alguma vez quiseres saber como é viver numa pintura, vai a Deià. Esta pequena aldeia pendurada numa encosta tem vistas que desafiam a gravidade. Casas de pedra que parecem crescer organicamente da montanha, com o mar Mediterrâneo como pano de fundo. Fiquei a saber que é um refúgio de artistas e escritores, e não é difícil perceber porquê. Há uma qualidade de luz aqui que não consigo descrever dourada, suave, quase mágica. Passei horas a caminhar sem rumo, a tirar fotografias e a pensar em… nada. E foi libertador. A verdadeira liberdade, sem a tirania do "fazer".
Soller é uma cidade encantadora no coração da Serra de Tramuntana. O que a torna especial é o elétrico vintage que liga Soller ao Port de Soller. Parece que voltamos no tempo. A praça principal, com a sua igreja imponente e cafés acolhedores, é o coração pulsante da cidade. Foi aqui que provei a melhor sobremesa da minha vida – um gelado de laranja local que me fez questionar todas as minhas escolhas culinárias anteriores. Sim, todas
Num dos restaurantes xpto, entreguei-me a um festim digno dos deuses: um Ribeye de 300g, delicadamente marmoreado para um sabor sublime, acompanhado por um molho de cogumelos trufados que faria um chef francês chorar de emoção. A couve grelhada com maionese de anchova foi aquele acompanhamento que começas a comer por educação e acabas a disputar o último bocado com a tua própria consciência. É a guerra na mesa, e eu sou o campo de batalha.
Mas nem só de restaurantes chiques vive o homem. Alguns dos meus melhores momentos gastronómicos foram em pequenas tascas locais, onde com gestos e o meu espanhol rudimentar, consegui provar uma Paelha no restaurante “Detapas” na Plaça de la Llotja, 2, Centre. A dona é uma senegalesa, e essa é a dica caso um dia passes por aqui e estejas afim de ver empreendedores africanos nas Ilhas. Outra especialidade é a “ensaimada” (um doce que é basicamente uma nuvem de açúcar e manteiga). É o tipo de coisa que te faz esquecer o nome, mas não o sabor.
Nem tudo foram praias paradisíacas e comida deliciosa. Num dos dias, enquanto estava perto do Porto de Pi com um grupo de turistas, presenciámos algo que nos trouxe de volta à dura realidade: um grupo de pessoas de origem subsariana e norte-africana foram resgatadas em operações coordenadas pela Guardia Civil e pelo Salvamento Marítimo no sul de Maiorca. Foram encontradas a bordo de uma embarcação precária, a 138 quilómetros a sul da ilha.
Ver aquelas pessoas, exaustas e desesperadas, a serem trazidas para terra, fez-me lembrar o privilégio que é poder viajar livremente, com um passaporte que abre portas em vez de as fechar. Ali estava eu, preocupado com não conseguir desligar-me do email, enquanto estas pessoas arriscavam a vida por uma oportunidade de futuro. É um soco no estômago, um lembrete brutal de que o mundo é muito mais do que a tua bolha de conforto.
Foi um momento de reflexão profunda que me acompanhou durante o resto da viagem. As ilhas do Mediterrâneo, como Maiorca, são simultaneamente paraísos turísticos e fronteiras trágicas onde se desenrolam dramas humanos diariamente. Não há como ignorar.
A minha maior dificuldade durante estas férias? Tentar não olhar para o email. Foi extremamente difícil porque faz parte da minha rotina, o email de trabalho está completamente entrelaçado com a minha vida pessoal. Felizmente, as colegas fizeram de tudo para eu não me envolver no trabalho e realmente aproveitar estas férias.
Nos primeiros dias, confesso que verificava o email de hora a hora. Depois passou a ser de manhã e à noite. No quarto dia, milagre dos milagres, só olhei uma vez, antes de dormir. Pequenas vitórias, como disse. Cada vez menos a sentir-me um viciado em recuperação.
Percebi que grande parte da minha ansiedade vinha do medo de ser necessário e não estar disponível. E se acontecesse algo importante? E se precisassem de mim para uma decisão urgente? E se, e se, e se… Aquele monólogo interno que te consome.
A BANTUMEN continuou a funcionar sem mim. Os emails foram respondidos, as decisões foram tomadas, o mundo não acabou. Foi uma lição de humildade e, ao mesmo tempo, libertadora. É como descobrir que o mundo não gira à tua volta, e que isso é, na verdade, uma coisa boa.
Estas férias ensinaram-me que parar não é apenas importante, é essencial. E, ironicamente, é também um trabalho. Um trabalho difícil para quem, como eu, está habituado a estar sempre ligado, sempre disponível, sempre a fazer algo. É a tua mente a lutar contra a tua própria natureza.
Aprendi que o descanso não é preguiça, é manutenção. Da mesma forma que um carro precisa de revisões regulares para continuar a funcionar bem, o nosso corpo e a nossa mente precisam de pausas para recarregar. É a tua revisão anual, só que com sol e paella.
Aprendi que estar presente – verdadeiramente presente – é um luxo que não tem preço. Sentir o sol na pele sem pensar na próxima reunião, saborear uma refeição sem verificar notificações, observar um pôr-do-sol sem o impulso de o partilhar imediatamente nas redes sociais. É a liberdade de ser apenas tu, no momento.
E aprendi que, por vezes, precisamos de sair da nossa zona de conforto para encontrar conforto. Viajar sozinho, navegar num país cuja língua não domino, confiar em estranhos para indicações – tudo isto me tirou da minha bolha habitual e me fez crescer de formas que não esperava. É a vida a dar-te umas chapadas para te acordar.
Volto destas férias com energias renovadas e ideias frescas. E com uma promessa a mim mesmo: fazer disto um hábito, não uma exceção. Talvez não precise de ir até Maiorca para desligar (embora não me importasse nada), mas preciso de criar momentos regulares de desconexão.
E por falar em conexão, não posso terminar sem vos lembrar da última festa de comemoração dos 10 anos da BANTUMEN, especial São Tomé e Príncipe, que acontecerá no dia 12 de julho no Musicbox em Lisboa. No próximo episódio, prometo trazer-vos todos os bastidores deste evento que promete ser inesquecível.
Até lá, talvez experimentem desligar-se por um dia. Ou uma hora. Ou dez minutos. Comecem pequeno. Porque desligar também é trabalho, e como qualquer trabalho, requer prática.
E, quem sabe, talvez descubram, como eu, que o mundo continua a girar mesmo quando paramos. E que, às vezes, é precisamente quando paramos que começamos a ver o mundo a girar. E isso, meus amigos, é a verdadeira viagem.