#OFF-STAGE # 15 - O dilema da modernidade líquida
Uma reflexão sobre o que nos define, entre o que amamos e o que realmente somos
Ah, a modernidade! Essa amante volúvel que nos seduz com promessas de progresso e nos atira para um turbilhão de novidades, onde a obsolescência é a única constante. Como é que um mortal comum, ou mesmo um projeto editorial com ambições desmedidas, consegue manter-se relevante numa era em que tudo se atualiza à velocidade da luz? É a pergunta que me assombra, caros leitores, enquanto as Big Techs vomitam produtos novos a cada piscar de olhos, as grandes corporações contratam génios do marketing e os gurus do tráfego pago e do conteúdo (leia-se: podcasts, reels, vídeos) prometem a fórmula mágica para alcançar um público que, convenhamos, já não sabe o que quer. Tudo isto, claro, para nos mantermos 'atualizados'. Mas atualizados para quê, pergunto eu? Para a próxima tendência que morrerá antes mesmo de a dominarmos?
E nós, na BANTUMEN, onde nos encaixamos neste vai-não vai? Desde o dia zero, quando a ideia germinou na minha mente (e na da Vanessa, claro, que sem ela esta nave não voava), a estratégia sempre foi uma quimera pessoal. Sou eu quem delira com os layouts, quem decide as fontes, quem sonha com a arquitetura dos nove sites que habitam a minha imaginação. Já trabalhámos com mais de duas dezenas de desenvolvedores, perseguimos os melhores do mercado, aqueles que sussurram segredos aos ouvidos do Rimas e Batidas, do Gerador ou do Shifter. O nosso conteúdo, sim, sempre foi para um nicho, um nicho que, por vezes, parece mais um buraco negro. Mas a nossa cabeça, essa sim, é um universo em constante expansão. Trabalhamos com todos os que se juram a nós para desenvolver a melhor versão da BANTUMEN. Mas a verdade, meus caros, é que esta versão idealizada da BANTUMEN só existe na minha cabeça e na da Vanessa. Porque esta BANTUMEN, este nicho, é complexo. Tão complexo que, por vezes, me pergunto se não estamos a tentar decifrar um enigma sem solução.
Existe a cultura negra americana, essa força avassaladora que, qual tsunami, varre o mundo do entretenimento: o hip-hop, o R&B, o blues, os espetáculos de comédia stand-up que nasceram da Def Comedy Jam de Russell Simmons, os filmes que nos marcaram, como 'Beverly Hills Cop' (1984), 'Bad Boys' (1995), 'White Men Can’t Jump' (com Wesley Snipes e Woody Harrelson, uma obra-prima dirigida por Ron Shelton), os clássicos de Eddie Murphy, Will Smith, e a dinastia dos irmãos Shawn e Marlon Wayans, até aos mais recentes filmes de Tyler Perry. Tudo isto, meus caros, é sobre a cultura norte-americana. E a BANTUMEN? A BANTUMEN é sobre as diversas culturas dos países que falam português. Uma distinção crucial, mas que, por vezes, parece um abismo.
Mas a verdade é: o que sobrou desta cultura dos países que foram formados sob o jugo colonial português? Os negros brasileiros, por exemplo, representam 70% da cultura afro-americana (sim, americana, porque a influência é inegável) e apenas 30% da cultura afro-brasileira (aquilo que sobrou do resgate, do que se desmembrou das pessoas comercializadas). A cultura angolana, a cabo-verdiana (o maior experimento de assimilação que o mundo já viu, uma verdadeira obra de arte da aculturação), Moçambique e a Guiné-Bissau, essas sim, têm alguma influência das suas fronteiras, África do Sul e Senegal, respetivamente. Mas vivem como crianças abandonadas pelos pais, com a esperança vã de que um dia eles voltem. Quanto a São Tomé e Príncipe, prefiro não comentar. Mas, se tivesse de o fazer, diria que é como uma impressora que só tem o tinteiro colorido e que ninguém usa, porque até para imprimir a preto e branco, precisa de tinteiro preto e por isto ninguém o faz. Uma metáfora, talvez, um tanto cruel, mas que, no fundo, espelha uma realidade.
É complexo, deveras complexo, descrever as diversas culturas da Lusofonia. Porque nelas entram os 'pretos portugueses', esses seres que não têm referências negras e que continuam a culpar os pais por tudo de errado que têm na cabeça. Vivem à espera da aprovação dos 'portugueses de primeira', e as suas referências são da cultura típica portuguesa, mas sem poderem assumi-la a 100%, porque não existem iguais a eles. Logo, são obrigados a ir resgatar as culturas dos pais que não os deixaram ser (aqueles que não podiam falar crioulo em casa, os que tiveram de se moldar para serem integrados e aceites). Aqueles que já estão nas salas importantes, salas onde já são ouvidos, onde já escolhem entre o A e o B, mas as suas formações em 'pretos únicos' não lhes permitem recomendar ou escolher o C. Uma tragédia, diria eu, digna de um dramaturgo grego.
Pensar no que é a BANTUMEN é a maior tarefa dos meus últimos quinze anos. Sinto que o nicho da BANTUMEN é um conjunto de homens e mulheres que amam Aretha Franklin, Nina Simone, 2 Pac, Martin Luther King Jr. e Kendrick Lamar, mas que se identificam, na verdade, com Marilyn Monroe, Kate Moss, Jeff Bezos, Justin Bieber e Eminem. Quase me sinto obrigado a dizer que não há mal nenhum nisso, mas isto, meus caros, revela a cultura que realmente possuímos. É um paradoxo, uma dicotomia que me consome.
É aqui que reside a complexidade do senso de pertencimento. Como conciliar a admiração por ícones de uma cultura com a identificação pessoal com figuras de outra? Esta dicotomia não é apenas um capricho intelectual, mas uma realidade vivida por muitos, um constante malabarismo entre o que se é e o que se aspira ser, entre as raízes e as influências que nos moldam. É a busca incessante por um lugar onde todas as nossas facetas possam coexistir sem conflito, onde a identidade não seja um fardo, mas uma celebração.
Eu dou muitas voltas para desenvolver os temas, sim, levo muito tempo para conseguir explicar o que está na minha cabeça, até aqui na redação. Porque é muito difícil explicar aos meus o que é a BANTUMEN, pois eles também são tudo o que descrevi acima. É um ciclo vicioso, uma serpente que morde a própria cauda.
Tenho aqui um exemplo puro de como as nossas culturas, apoiadas na cultura portuguesa, nos descrevem. Wakanda, essa cidade-estado fictícia do universo da Marvel, localizada em África e conhecida por ser a nação mais tecnologicamente avançada do planeta (para quem já viu o filme), possui um mercado à beira do rio. Um espaço vibrante, colorido e comunitário, onde se sente a alma do povo wakandano. Localizado junto a um rio sereno que atravessa a cidade, o mercado é rodeado por uma luxuosa vegetação e construções tradicionais em barro e madeira, com toques tecnológicos discretos. As bancas estão cobertas com tecidos africanos estampados em tons vivos (vermelho, amarelo, verde, azul), pendurados como toldos que dançam com o vento.
As vendedoras e vendedores usam roupas típicas com cortes contemporâneos, e muitos têm acessórios com tecnologia integrada — como pulseiras que funcionam como dispositivos de comunicação ou pagamento. As estruturas das bancas misturam madeira e metais polidos, com detalhes em Vibranium que fornecem energia a pequenos dispositivos (como ventiladores, balanças digitais ou luzes LED). Agora, pensem comigo: como é que a nação mais tecnologicamente avançada do planeta tem um mercado tão idêntico ao mercado da Sucupira em Cabo Verde, ao Mercado de Bandim em Bissau, que fazem do Mercado Central de Maputo e dos Congolenses em Luanda locais de venda modernos para Wakanda? É uma pergunta que me tira o sono.
Ajudem-me a perceber como continuar a modernizar-nos sem parecermos o mercado da nação mais tecnologicamente avançada do planeta, Wakanda. É um desafio, meus caros, um verdadeiro dilema existencial.
E assim, caros leitores, chegamos ao fim de mais uma incursão pelos labirintos da BANTUMEN, onde a complexidade da identidade lusófona se cruza com a universalidade do humor e da ironia. A nossa jornada é contínua, e as histórias, essas sim, nunca se esgotam. Se esta viagem vos despertou a curiosidade, vos arrancou um sorriso ou vos fez refletir sobre a vossa própria existência neste palco de absurdos, então a nossa missão foi cumprida. Mas a aventura não tem de terminar aqui. Se desejam continuar a desvendar os segredos dos bastidores, a rir das nossas (e das vossas) desventuras e a fazer parte desta comunidade que, apesar de tudo, se recusa a ser categorizada, então o convite está feito: subscrevam a newsletter OFF-STAGE. É gratuita, sim, mas o vosso apoio, seja ele qual for, é o combustível que nos impulsiona a continuar a desvendar as verdades inconvenientes e a celebrar a beleza do caos. Juntem-se a nós, porque a melhor versão da BANTUMEN, essa sim, está sempre a ser escrita, e vocês são parte fundamental dela.