#OFF-STAGE # 17 - A Pergunta que Ninguém Quer Fazer
Por que é que Portugal não comemora o Mês da Consciência Negra? E por que é que nós, negros, continuamos a fingir que não precisamos uns dos outros?
Bem-vindos a mais uma edição da newsletter semanal OFF-STAGE, o vosso refúgio onde as peripécias dos bastidores da BANTUMEN são contadas com uma dose generosa de ironia e sarcasmo – uma espécie de muro das lamentações, mas com mais piada. Por enquanto, o OFF-STAGE é gratuito, mas se a vossa generosidade vos picar, podem sempre colaborar e apoiar este conteúdo e o seu humilde criador. Em troca, prometo usar a minha (modesta) influência para vos dar acesso privilegiado aos eventos mais exclusivos da BANTUMEN e a histórias que, garantidamente, só aqui vão encontrar.
Hoje venho com uma pergunta que me tem tirado o sono, não pela sua complexidade, mas pela sua simplicidade brutal: porque é que Portugal não comemora o Mês da Consciência Negra? E já agora, por que é que nós, comunidade negra portuguesa, continuamos a comportar-nos como se fossemos uma coleção de ilhas isoladas num arquipélago de desconfiança mútua?
Antes que me acusem de estar a ter uma crise existencial (que também pode ser verdade), deixem-me contextualizar esta reflexão com uma dose de realidade que, como sempre, dói mais do que deveria.
Estamos em 2025 e - enquanto os Estados Unidos e o Canadá celebram o Black History Month em fevereiro, o Reino Unido e a Irlanda fazem-no em outubro, e o Brasil honra o Dia da Consciência Negra a 20 de novembro em memória de Zumbi dos Palmares -, nós, cá em Portugal, continuamos a olhar para o calendário como se fosse um puzzle no qual nos falta uma peça fundamental. E essa peça, meus caros leitores, somos nós próprios.
Há três anos que a BANTUMEN, numa daquelas "estupidezes" (como eu gosto de chamar às nossas iniciativas mais ambiciosas), criou o MIA – Mês da Identidade Africana. Uma iniciativa que, confesso, nasceu mais da nossa teimosia em existir do que de qualquer plano estratégico genial. E agora, às portas da 4ª edição, pergunto-me: como é que uma "estupidez" protagonizada pela redação de uma revista online se tornou, talvez, no único momento do ano em que a comunidade negra portuguesa se vê verdadeiramente representada de forma consistente e organizada?
O MIA acontece de 1 a 30 de novembro, e durante todo este mês, a BANTUMEN produz e publica conteúdos exclusivos sobre representatividade negra em Portugal e no espaço lusófono. Entrevistas, artigos de opinião, reportagens, análises culturais e sociais - tudo aquilo que, durante os outros onze meses do ano, luta por espaço numa agenda mediática que nos trata como uma nota de rodapé da sociedade portuguesa.
Mas o MIA não se fica pelo digital. Em 2023 e 2024, ocupámos espaços físicos em Lisboa e no Porto. No primeiro ano, desafiámos a SAFRA, no Lumiar, a acolher uma exposição, uma performance de dança, outra de spoken word e fizemos, no Selina, duas sessões de cinema. Em 2024, entre 1 e 15 de novembro, instalámo-nos no Avenidas – Um Teatro em Cada Bairro, com a exposição "Caleidoscópio" e uma programação que incluía o workshop Raízes de Poder, a sessão literária Leituras Negras, a mostra de cinema Nós na Tela, o mercado pop-up Marché Noir e a conversa Amar no Masculino. No Porto, de 20 a 30 de novembro, a exposição "Caleidoscópio" foi apresentada na UPTEC, e a Casa Odara uniu-se à BANTUMEN e recebeu outras atividades que reforçaram o diálogo sobre identidade, cultura e representatividade negra.
Este ano, o MIA 2025 promete ser ainda maior, com exposições previstas para Lisboa, Porto e Luanda, entre outros eventos que reúnem artistas, ativistas, académicos e público interessado em refletir sobre identidade, cultura e pertença. Não é apenas uma iniciativa nossa, é uma iniciativa que gostávamos de ver unir toda a comunidade para se organizar e se celebrar - com o apoio da comunicação do nosso lado. Para mim, o MIA tornou-se um marco na agenda cultural afro-lusófona, funcionando como espaço de encontro, reflexão e celebração das várias formas de ser e viver a negritude.
Mas aqui está a pergunta que me corrói por dentro e que venho fazer a todos vocês, mais de 5 mil subscritores desta newsletter: como é que fazemos isto tornar-se numa celebração que vai além da BANTUMEN e passa a ser uma celebração das comunidades negras em Portugal? Como é que transformamos uma iniciativa editorial numa iniciativa nacional?
E a resposta honesta? Eu também não sei como fazer isto acontecer.
Na minha cabeça, nós, enquanto comunidade, não temos organização nem expertise cognitiva para tornar este mês ou qualquer outro mês no momento em que celebramos a nossa existência em Portugal. E sabem porquê? Porque, tecnicamente, não existimos em Portugal. Não temos qualquer tipo de peso político ou social. Continuamos a ser pequenas associações, coletivos e grupos que organizam atividades para chamar a atenção do "homem branco" ou das grandes instituições, na esperança de ganhar algumas moedas e de estar na lista dos "pretos fixes", dos "pretos assimilados".
É uma constatação amarga, mas verdadeira. Estou constantemente a questionar-me: quem somos nós? Como é que os nossos ancestrais conseguiram comunicar entre si para haver as lutas de descolonização? Como é que a Guiné-Bissau teve influência na independência de Cabo Verde? Havia uma rede, uma consciência coletiva, uma identidade partilhada que transcendia fronteiras geográficas e políticas.
Como é que criamos uma consciência coletiva numa comunidade que parece mais interessada em competir entre si do que em colaborar? Como é que transformamos o MIA numa celebração nacional quando nem sequer conseguimos concordar sobre o que significa ser negro em Portugal?
A verdade é que somos uma comunidade fragmentada. Temos os cabo-verdianos, os angolanos, os guineenses, os são-tomenses, os moçambicanos, os afro-descendentes nascidos em Portugal, cada grupo com as suas especificidades, as suas dores, as suas conquistas. E em vez de vermos essa diversidade como uma força, tratamo-la como uma barreira. Em vez de celebrarmos as nossas diferenças como facetas de uma identidade mais rica e complexa, usamo-las como desculpas para não nos unirmos.
É como se fôssemos uma orquestra onde cada músico insiste em tocar uma música diferente, e depois nos queixamos de que ninguém nos ouve. O problema não é a falta de talento individual temos artistas, ativistas, académicos, empresários, criadores de conteúdo extraordinários. O problema é a falta de uma partitura comum, de uma visão partilhada do que queremos ser enquanto comunidade.
E talvez seja essa a nossa maior tragédia: não é que não tenhamos poder é que não sabemos como usá-lo. Somos mais de 500 mil pessoas em Portugal, segundo as estimativas mais conservadoras. Somos consumidores, contribuintes, eleitores, criadores de cultura, geradores de riqueza. Mas continuamos a comportar-nos como se fôssemos uma minoria insignificante que tem de pedir licença para existir.
Imaginem se, em vez de cada associação, coletivo ou grupo organizar o seu evento isolado, nos juntássemos todos para fazer do mês de novembro ou de qualquer outro mês um momento de celebração nacional da negritude portuguesa. Imaginem se, em vez de competirmos por migalhas de financiamento, criássemos uma plataforma comum que amplificasse as nossas vozes individuais. Imaginem se, em vez de nos definirmos pelo que nos separa, nos definíssemos pelo que nos une: a experiência de ser negro num país que ainda não sabe muito bem o que fazer connosco.
Mas para isso acontecer, teríamos de fazer algo que, aparentemente, nos é muito difícil: confiar uns nos outros. Teríamos de deixar de lado os egos, as rivalidades, as pequenas disputas de território, e perceber que o nosso verdadeiro inimigo não são os outros negros é a invisibilidade, é a marginalização, é a falta de representação estrutural numa sociedade que nos tolera, mas não nos inclui verdadeiramente.
O MIA da BANTUMEN é apenas um começo, uma semente plantada num terreno que ainda está a ser preparado. Mas para que essa semente cresça e se torne numa árvore frondosa, precisa de mais do que a água que nós, sozinhos, conseguimos dar. Precisa de uma floresta inteira de iniciativas, de vozes, de mãos que se estendem umas às outras.
E aqui está a ironia cruel: temos todas as ferramentas para fazer isto acontecer. Temos talento, temos criatividade, temos histórias para contar, temos uma riqueza cultural que faria inveja a qualquer comunidade. O que nos falta é a vontade de deixar de ser uma coleção de indivíduos excepcionais e tornarmo-nos numa comunidade excepcional.
Talvez a pergunta não seja "porque é que Portugal não comemora o mês da consciência negra?", mas sim "porque é que nós, negros portugueses, ainda não criámos o nosso próprio mês da consciência negra?". Talvez a resposta não esteja nas instituições, nos governos, nas estruturas de poder que nos ignoram, mas em nós próprios, na nossa capacidade de nos organizarmos, de nos unirmos, de criarmos as nossas próprias tradições e celebrações.
O MIA 2025 está aí à porta. Mais uma vez, a BANTUMEN vai fazer a sua parte, vai criar conteúdo, vai organizar eventos, vai dar palco a vozes que merecem ser ouvidas. Mas desta vez, lanço-vos um desafio: não sejam apenas espectadores. Sejam participantes ativos. Organizem os vossos próprios eventos, criem os vossos próprios conteúdos, juntem-se a nós ou criem as vossas próprias iniciativas. Façam do MIA não apenas um projeto da BANTUMEN, mas um movimento de toda a comunidade negra portuguesa.
Porque, no fundo, a pergunta que realmente importa não é se Portugal está pronto para nos celebrar. A pergunta é se nós estamos prontos para nos celebrarmos a nós próprios. E se a resposta for sim, então talvez, finalmente, possamos parar de pedir licença para existir e começar a existir em pleno.
E assim, caros leitores, encerramos mais um capítulo desta saga que é a vida, vista pelos olhos (e pela pena) da OFF-STAGE. Se esta incursão pelos meandros da identidade, da comunidade e da eterna busca por um lugar ao sol vos arrancou uma reflexão, uma lágrima ou, quem sabe, uma vontade de agir, então a nossa missão foi cumprida. A vossa curiosidade é o nosso combustível, e as vossas ações, a nossa maior recompensa.
Mas a aventura não tem de terminar aqui. Se desejam continuar a desvendar os segredos dos bastidores, a refletir sobre as nossas (e as vossas) contradições e a fazer parte desta comunidade que, apesar de tudo, se recusa a ser categorizada, então o convite está feito: subscrevam a newsletter OFF-STAGE. É gratuita, sim, mas o vosso apoio, seja ele qual for, é o que nos impulsiona a continuar a fazer as perguntas inconvenientes e a celebrar a beleza do caos organizado que somos.
Juntem-se a nós, porque o palco pode estar às escuras, mas a conversa continua nos bastidores. E é lá que as coisas realmente acontecem.