OFF-STAGE #19: Do Silêncio Digital ao Ritmo Lo-Fi
Está aí, finalmente, a minha nova faixa lo-fi, “1AM”, um marco sonoro que assinala o meu regresso às produções musicais.
Para quem ainda não se aventurou pelos meandros da minha (modesta) carreira paralela, em 2020, no auge da pandemia da COVID-19, e na onda das mais variadas atividades, hobbies e profissões que brotaram do confinamento, eu desenvolvi, com a preciosa ajuda do Mistah Issac, um gosto peculiar pela produção musical.
Éramos vizinhos, em São Bento, Lisboa, prédios um em frente ao outro, e as minhas escapadelas, qual fugitivo da rotina, eram para a casa dele. A ideia inicial era criar um jingle para o quinto aniversário da BANTUMEN.
As minhas ideias para o beat eram tão… fortes, que ele, num misto de exasperação e génio, começou a obrigar-me a mexer no Logic, o software de produção musical da Apple. E assim, entre cliques e acordes desafinados, nasceu a minha primeira faixa: “Pipocar”.
Uma produção 25% minha e os restantes 75% desenvolvidos pelo Mistah Issac, lançada a 12 de março de 2021. “Pipocar” marcou a minha incursão no universo do lo-fi hip-hop, apresentando-se como uma viagem sonora intimista, assente em batidas minimalistas, acordes suaves e texturas que evocam uma nostalgia quase palpável.
Com uma produção enxuta e um foco obsessivo no detalhe, “Pipocar” é um som para se relaxar, perfeito para acompanhar tanto momentos de estudo como instantes de introspeção profunda. Mais do que uma mera experiência estética, a faixa afirma o meu lado criativo para lá do jornalismo e da gestão cultural, revelando uma versatilidade que, confesso, me surpreende a mim próprio. “Pipocar” é, no fundo, minimalismo sonoro transformado em identidade. Uma identidade que, agora, se expande com “1AM”.
Confesso que a minha ignorância sobre o processo de produção musical sempre me deixou de pé atrás na hora de fazer uma crítica musical. Na minha cabeça, não fazia sentido criticar alguém que dedicou o seu tempo a criar um beat, uma música ou uma composição. Mas, ao aprender a mexer com estas máquinas (MIDI Production Center) e softwares de produção, passei a perceber melhor as dificuldades – e as facilidades – inerentes à criação musical. É um universo complexo, onde a inspiração se cruza com a técnica, e a paciência é uma virtude rara. A minha jornada na música é um processo lento, quase uma meditação sonora, mas toda a minha base começou com o Mistah Issac, tutoriais do YouTube e mais de cinco cursos comprados na Domestika.
Foram, até hoje, 14 singles e um álbum de 13 faixas, com mais de um milhão de streams alcançados desde então. Um feito, para quem, como eu, se divide entre mil e uma paixões. No entanto, a minha falta de prática diária dificulta que me torne quem eu imagino que poderia ser um dia: uma espécie de Dilla, Dre, Toty Sa’Med, Havoc, RZA, Pharrell, Teo No Beats, Metro Boomin, Alchemist ou o maior de todos os tempos, DJ Znobia (se não conhecem, por favor, façam o favor de ir pesquisar).
Mas ninguém se torna o Cristiano Ronaldo com as atitudes e a falta de disciplina do Fábio Paim. Por isso, continuo no meu canto, a produzir no silêncio, quando encontro tempo nos intervalos entre a BANTUMEN e as minhas atividades que garantem a minha sustentabilidade aqui em Paris. É uma luta constante contra o tempo e a procrastinação, mas a paixão, essa, nunca se apaga.
E foi nesta cidade, Paris, que voltei a encontrar a força para produzir. Fiquei cerca de um ano sem lançar nada e uns seis meses longe da produção, mas em fevereiro deste ano, conheci um miúdo de 21 anos no centro de Paris, Kaito Diallo, nascido a 2 de março de 2004 em Osaka, Japão. Filho de pai senegalês e mãe japonesa, Kaito cresceu num ambiente multicultural que moldou profundamente a sua identidade musical. Os traços físicos, que combinam características delicadas japonesas com a estrutura elegante e alta herdada do pai senegalês, fazem dele uma presença distinta, com uns singelos 1,78m de altura e uma constituição magra. Até aos 14 anos, Kaito viveu no Japão, onde foi introduzido desde cedo ao mundo da música clássica através da mãe, pianista, e ao ritmo tradicional africano graças às influências paternas. Esta fusão única despertou-lhe uma paixão profunda pela música clássica, levando-o a estudar piano e violino desde a infância.
Em 2018, Kaito mudou-se para França, instalando-se em Sevran-Beaudottes, nos arredores de Paris. Na capital francesa, rapidamente se adaptou à nova vida, dominando fluentemente o francês, língua paterna, além do inglês e japonês, línguas que fala desde criança. Atualmente, estuda música no prestigiado Conservatoire National Supérieur de Musique et de Danse de Paris, focando-se em composição e produção musical. Apesar da sua sólida formação clássica, é no género lo-fi que Kaito encontrou a expressão perfeita para a sua sensibilidade artística. As suas produções destacam-se pela mistura subtil de melodias delicadas e texturas sonoras suaves, refletindo as raízes multiculturais que traz desde a infância. Kai'Tone, o seu projeto artístico, rapidamente tem ganhado reconhecimento pela originalidade e profundidade emocional das suas criações, conquistando fãs que procuram uma música relaxante e envolvente, que transmite paz e introspeção. Ter o Kai por perto é poder não me afogar na mistura e masterização; é ter um especialista a fazer a melhor pós-produção para as minhas composições. E, claro, para ele, é como ter por perto um Rick Rubin no seu estúdio. Uma simbiose perfeita, onde a experiência encontra o talento bruto.
Para quem ainda não se rendeu aos encantos de “1AM”, permitam-me uma breve, mas exímia, análise desta obra-prima que, na minha humilde opinião, merecia que o seu produtor tivesse 48 horas por dia para nos brindar com mais música que, garanto, é um bálsamo para a ansiedade. A paleta sonora de “1AM” aposta numa batida mid-tempo e discreta, com caixa seca e hi-hats finos a marcarem o pulso – a assinatura clássica do lo-fi que privilegia o balanço sobre o impacto. A sub-camada harmónica é quente e acolhedora: pads filtrados, sintetizadores macios e, muito provavelmente, teclas com um voicing jazzy que acrescentam cor sem roubar protagonismo à batida. O ambiente textural (ruído subtil, “hiss” e micro-ambiências) cria uma sensação de proximidade e intimidade, como se estivéssemos numa sala às 1 da manhã, com luz baixa e pensamento solto.
Em termos de mistura, tudo indica uma escolha por headroom confortável e saturação leve (estética “tape”), privilegiando um baixo redondo e um kick centrado, enquanto as camadas harmónicas respiram em stereo. O resultado é uma imagem sonora profunda, mas não densa, própria para longas sessões de escuta sem fadiga. A faixa organiza-se em ciclos que evoluem por micro-variações – entrada/saída de elementos, cortes curtos de bateria, pequenas inflexões melódicas. Essa escrita por “camadas” sustém o interesse ao longo do loop sem recorrer a refrões explícitos ou a picos dinâmicos fora do ethos lo-fi. Há momentos de “respiro” (com redução da percussão ou filtragem mais acentuada) que funcionam como “pontes” antes do regresso ao groove principal.
A harmonia sugere progressões suaves com tensões moderadas (9ª/11ª), típicas da ponte entre jazz e hip-hop. As linhas melódicas parecem optar por frases curtas e motivos repetidos, ora no teclado/pad, ora em “chops” texturais, mantendo o foco na vibe e não na virtuosidade. É música que se faz sentir antes de se fazer notar. A presença de Kai’Tone acrescentou uma delicadeza tímbrica, detalhes de teclas, contrapontos discretos e uma sensibilidade harmónica coerente com a sua formação musical. O background do Kaito ajuda a explicar a fluência melódica e o cuidado no espaço entre notas – uma musicalidade “respirada” que casa bem com o minimalismo do lo-fi.
Continuarei nesta trilha silenciosa do lo-fi, vinda das entranhas, onde “1AM” mostra o meu amadurecimento estético em comparação com os lançamentos anteriores, mas sempre a criar ambientes para estudar/trabalhar/relaxar. Aqui sente-se um refino de escolhas – desde a seleção de timbres ao modo como o loop se reconfigura ao longo do tema.
“1AM” encaixa com naturalidade em playlists de lo-fi/Study/Focus/Chill, mas também dialoga com curadorias de hip-hop instrumental e downtempo. E, pasme-se, encaixa perfeitamente como som de fundo para qualquer entrevista, seja na BANTUMEN ou noutra plataforma qualquer. Se ainda se questionam o que a minha música tem a ver com os bastidores da BANTUMEN, eu explico: a produção musical chegou à minha vida devido às exigências estéticas para apresentar uma BANTUMEN moderna, com trilhas sonoras próprias. E quem melhor para fazer isso do que quem a conhece desde o início?
Se ainda não conhecem as minhas músicas, deixo abaixo uma playlist com todas as produções que já fiz. E se acharem que são poucas, abracem a minha motivação: o Irmão Valete começou a sua carreira em 2000 e, com 44 anos e 25 de carreira, tem no seu portfólio cerca de 48 músicas, considerando álbuns, EPs e singles lançados oficialmente. Eu, com 40 anos de idade e 4 de carreira, tenho cerca de 25 músicas lançadas oficialmente até agora. Esta é a minha motivação quando penso que estou a fazer poucos lançamentos. É uma maratona, não um sprint, e cada nota é um passo em frente.
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