OFF-STAGE #22: Angola, Cesária e a bolha elitista que me assombra
Abre o Spotify ou o YouTube e mete a tocar a faixa “Angola” da Cesária Évora. Só depois continua a leitura
Meus caros, continuo em Angola… e a minha cena com Cabo Verde, que, provavelmente, vem de nunca me ter relacionado com uma mulher angolana fora de Angola, leva-me a ter uma espécie de propriedade intelectual - com base em fluidos trocados -, que me faz adotar sentimentos de um nativo do arquipélago quando falo deste país. E para descrever o que sinto aqui em Angola, vou buscar a tia Cesária, que, em Portugal, não foi valorizada e também teve de emigrar para França.
Agora abre o Spotify ou o YouTube e mete a tocar a faixa “Angola” da Cesária Évora. Só depois continua a leitura.
É uma canção de amor e saudade que expressa o vínculo profundo entre Cabo Verde e Angola, dois países irmãos, ligados por histórias de colonização, migração e cultura partilhada.
Na canção, Cesária fala como se Angola fosse uma pessoa amada e distante. O tom é de nostalgia e carinho. Evoca a lembrança de um lugar onde viveu bons momentos. Tão bons que sair dali seria urgente, antes que aquela vida boa a desencaminhasse (mais ainda).
Há uma sensação de viagem e desencontro, típica das mornas e coladeiras: o corpo está num sítio, mas o coração ficou noutro.
Esta música, que soa a festa mas carrega o sentimento de saudade, descreve bem o que tenho sentido desde que cheguei a Luanda - lembranças de Angola, lembranças da minha banda, que começam assim que, ainda no avião, pairamos sobre a capital. A vista para a baixa de Luanda e para os prédios quase a tocarem o firmamento deixa qualquer um embasbacado.
Ainda sobre a música, ela é leve, dançante e envolve-nos, num contraste com a melancolia da letra. É como o sentimento de entrar no centro comercial Fortaleza, no Hotel InterContinental Luanda Miramar ou no restaurante Kissange. É como ver infraestruturas que se comparam a qualquer edifício da prestigiada avenida Champs-Élysées, em Paris, a cinco minutos de casa. E sim, vivo em Paris, e já vi muita coisa, mas os edifícios de Luanda ainda me deixam boquiaberto. Só que, ao contrário de sair das Galeries Lafayette ou do Le Café Artcurial, aqui a realidade nua e crua aparece logo: um indigente na rua a lembrar-me que isto tudo é uma máscara, que aqui a pobreza é séria.
E é aí que as minhas palas de couro, as mesmas que se usam nos cavalos para não se assustarem, caem e lembro-me de onde estou realmente.
Começo assim, de forma leve, porque é a primeira vez que escrevo sobre a terra que me viu nascer. E é também a primeira vez que volto a Luanda depois de ter passado por todos os países que falam oficialmente português (vá, ainda não conheço São Tomé e Príncipe, mas sou tão amigo do Wilds Gomes e da família dele que é quase como se já lá tivesse ido). Voltar a Luanda depois de conhecer Maputo, Bissau, Praia e o Rio de Janeiro faz de Luanda aquela miúda gira que, com o tempo, só fica mais vistosa, mais interessante. Dá para uma conversa, para um one-night stand, mas nunca para mais do que isso. Sim, eu sei, é uma comparação de merda, machista e que só revela o meu estado de espírito aqui. Mas é o que é.
Vou deixar-me de rodeios e contar-vos como foram estes últimos dias.
A nossa missão principal, a razão pela qual arrastámos o nosso corpinho para este calor húmido, era encher a exposição de sexta-feira, 24 de outubro. Andámos de um lado para o outro com a nossa equipa de assessoria local e pedimos uma mãozinha às meninas da Authentic.ao, uma agência de marketing de influência e personal branding liderada pela Carolina Freitas, Poupée Martinho e Lay Van-Dúnem. A ideia era que elas nos ajudassem a fazer chegar o convite às celebridades e à imprensa nacional. E, claro, funcionou. Porque somos bons, mas com ajuda ainda somos melhores.
Passámos pelo grupo Nova Vaga, que detém o Novo Jornal e o Jornal Expansão, onde demos uma entrevista e assinámos uma parceria para a PowerList. Depois, fomos à redação do Jornal de Angola e, mais tarde, participámos no podcast do Tiago Costa, o GozaTv, que já está disponível para quem quiser ouvir as minhas barbaridades em direto.
No dia seguinte, fui conhecer os estúdios da Pirline, do rapper e amigo Reptile - um espaço com barbearia, estúdio de música, fotografia, vídeo e tudo e mais alguma coisa. E quem é que eu encontro por lá? O El Condutor, que provavelmente anda por Luanda a beber das batidas e dos ritmos angolanos, já que os Buraka Som Sistema anunciaram o regresso para 2026. Coincidência? Não me parece.
Saí dos estúdios Pirline e fui para a Platina Line, que fica a uns 10 minutos de carro, para uma entrevista no programa MTP, com o Nunes Hebo. Fui vender o meu peixe - ou melhor, o peixe da exposição. E, no final do dia, fui até à marginal de Luanda gravar o podcast do Marco Vitor, o Coaching Angola. Tenho uma amizade porreira com o Marco, e fazia todo o sentido participar, já que os primeiros episódios, em 2018, foram produzidos por mim. O que vos posso garantir é que foi uma senhora conversa, com muitas histórias que o Marco conseguiu arrancar do meu inconsciente. E, acreditem, o meu inconsciente é um lugar escuro e perigoso.
Mas nem só de trabalho vive o homem, certo? Os miúdos do The Hub Criativo prepararam uma agenda cultural que incluía um tour gastronómico. E, meus amigos, que tour! Começámos no Habesha Restaurant, que serve comida etíope autêntica - uma experiência única, a comer com as mãos e em pratos que nunca tinha visto na vida. E, para minha surpresa, uma excelente opção para veganos e vegetarianos. Sim, eu também penso nos meus leitores que não comem animais. Sou um gajo sensível, no fundo.
Depois, passámos pelo restaurante Kissange, do Cláudio Silva, o fundador do Luanda Night Life. O restaurante ainda nem abriu ao público, mas o Cláudio fez-nos a honra de abrir as portas e deixar-nos provar os pratos que ainda estão a ser testados. O Kissange, na Maianga, é a materialização de todos os projetos que passaram pelas mãos deste empreendedor, que desde 2013 tem vindo a implementar iniciativas como o Angola Food Academy, o Angola Restaurant Week e o Luanda Cocktail Week. Com a sua experiência e sentido estético apurado, o Cláudio vai transformar o Kissange no novo centro da elite luandense. E foi nessa noite que descobri, com um misto de horror e fascínio, que faço parte dessa mesma elite que tanto abomino.
O tour terminou no Resgarte Teatro Bar, o primeiro teatro bar de Luanda. Um espaço cultural e gastronómico que mistura teatro, música ao vivo, boa comida e cocktails. Com uma estética intimista e moderna, o Resgarte é um dos polos culturais mais vibrantes de Luanda. E foi lá, no meio de uma peça de teatro e de um concerto acústico, que me senti, pela primeira vez em muito tempo, em casa. Ou, pelo menos, num sítio onde não me importava de ficar mais um bocado.
Foi uma semana difícil, mas proveitosa. A exposição de sexta-feira foi um sucesso surpreendente mais de 400 pessoas passaram por lá, com um pico de 200 pessoas na sala ao mesmo tempo. Sobre a exposição, podem ler mais no artigo que a Vanessa escreveu para a BANTUMEN.
Ainda estou em Luanda. Devo sair na próxima semana. Estou a aproveitar a estadia gratuita para poupar dinheiro e tratar de documentos, já que é impossível resolver seja o que for no consulado angolano em Portugal.
E é aqui que a história fica interessante ou, pelo menos, mais irritante.
Na manhã de sexta-feira, depois de uma reunião com o diretor de uma nova rádio, resolvi passar no balcão do BAI (Banco Angolano de Investimento) para reativar uma conta que não mexia desde 2014. Mostrei os documentos, dei o meu número da Africell (uma companhia telefónica que usa e-sim) e a senhora disse-me que, devido a um acordo entre o BAI e a Unitel, o internet banking só podia ser ativado com um número da Unitel. Já passava das 13h. Saí do banco, apanhei uma moto-táxi e fui a uma loja da Unitel comprar um número. Paguei, substituí o cartão SIM da Vodafone pelo da Unitel e a senhora Conceição (estava escrito na placa da farda) explicou-me que o número só estaria ativo dali a quatro horas.
A minha cabeça congelou. Saí da loja sem dizer uma palavra, apenas com aquele sentimento de quem está num filme em slow motion. Voltei para o banco, olhei para a senhora e, com a maior calma do mundo, disse: “Já comprei o número da Unitel, mas só fica ativo daqui a três horas. Pode, por favor, tentar ativar o internet banking com este número que tenho aqui?”
A senhora inseriu o número da Africell e, como por magia, o serviço ficou ativo. Com um número que, supostamente, não estava no acordo entre as duas instituições. Enfim, Angola.
Podia também contar-vos que fui tratar do registo criminal e, na hora de autenticar, o sistema falhou. E que todos estes “pequenos” detalhes me obrigaram a ficar na minha terra-mãe por mais uma semana.
Ao longo destes dias, tenho-me apercebido do quanto a BANTUMEN, os seus fundadores e colaboradores, têm trabalhado para um nicho que eu abomino completamente. Esta bolha dos que viveram fora de Angola independentemente do berço das suas famílias mas que começaram a vida numa meta muito mais avançada do que os comuns mortais. E percebi que tenho trabalhado para esta bolha também em Portugal, representada pelos pseudo-intelectuais: os pretos que estudaram ou tiveram mais oportunidades.
Ainda preciso de mais uns dias para entender o que estou a descobrir sobre o meu trabalho nestes últimos anos e como é que eu passei a fazer parte desta bolha de segregação.
Volto aqui para a semana, depois de entender como a minha bolha é podre. E dói-me muito perceber como eu e a minha corja elitizámos a BANTUMEN.





