OFF-STAGE #23: As três Angolas, o meu tio Capataz e a Inveja (da Boa e da Má)
Neste episódio de “Off the Stage”, mergulhei na viagem agridoce que é Angola, a minha terra natal — entre a inveja dos que “estão bem” e as memórias da casa onde nasci.
Meus caros, hoje começo esta missiva com uma reflexão que me tem moído o juízo: o que é, afinal, “estar bem”? E quem é que está, de facto, “bem” nesta vida?
Na minha última semana em Luanda, tive a oportunidade de visitar vários contemporâneos, malta da minha geração que está a dar cartas em Angola. E confesso, com a honestidade brutal que me caracteriza, que me bateu uma inveja. Daquela básica, rasteira. Vi estúdios de produção com câmaras de última geração, montes de funcionários a zumbir de um lado para o outro, e pensei: “Foda-se, estes gajos estão a conseguir.
Isto pode parecer generalizado, mas há uns 10 ou 15 anos, houve uma vaga. A malta que, como eu, andava lá por fora a ganhar calo, voltou para Angola. Ou porque acabou a formação, ou porque ganhou coragem para sair da terra que os viu tornarem-se homens e vir para a terra das suas origens concorrer com o mar de expatriados que já cá estava a reinar. Eram consultores, especialistas, diretores para as grandes empresas que se montavam à velocidade da luz: seguradoras, concorrentes da DSTV, a Movicel, a Unitel e as mil e uma marcas da “senhora” Isabel dos Santos. A febre dos super salários e o câmbio de 10 [100 kwanzas era 1 euros] abriram os olhos de muitos. Claro que um expatriado branco ganhava 2.000 USD e um angolano que estudou fora ganhava 1.000 USD (valores meramente exemplificativos, não me venham chatear com pormenores), mas ainda assim, era o El Dorado.
Eu não fiz parte desse grupo de corajosos. Quer dizer, voltei na mesma altura, mas não vim do nada. Não tinha boas referências de Angola e, por ter crescido em Portugal, a ideia de ter chefes brancos em Angola, tal como já tinha em Portugal, não me soava particularmente apelativa. Mas lá vim eu, na minha versão de “expatriado negro”, depois de negociar com os meus patrões portugueses. Vim liderar, juntamente com a Vanessa, que também veio como expatriada, mas com a vantagem de estar genuinamente apaixonada por Luanda. Eu? Eu vim pelo dinheiro. Sem qualquer paixão pela terra que me viu nascer.
E que dinheiro, meus amigos. Foram quase 600 dias em Angola. 400 como chefe de redação no SAPO e os restantes como diretor criativo na ZAP. Ganhei tanto dinheiro que deu para juntar o capital que, mais tarde, daria origem à BANTUMEN. Mas, ao mesmo tempo, nunca fui tão infeliz. E eu, na estupidez da minha juventude, juro que cheguei a pensar que o segredo da felicidade era uma combinação de dinheiro, mulheres ilimitadas e uma PlayStation. No auge da minha parvoíce, cheguei a propor à mãe da minha filha mais velha (com quem já não tinha nada) que não fizesse um caralho da vida a não ser criar a nossa filha, transformando uma mulher adulta numa dependente da minha vida boa em Angola. E nem vamos falar da minha mãe, que passou a ser minha filha com um pai rico.
Pronto, surtei um bocado. Contei-vos coisas que não vos interessam para nada, mas precisava que tivessem a noção da quantidade de dinheiro que eu ganhava. E não era dinheiro de empreendedor, era salário. E com esse dinheiro, veio a maior infelicidade do mundo. Angola estava a tornar-me pouco criativo, um ser humano que criou palas nos olhos para não ver o que se passava à sua volta. E eu, tal como todos os “irmãos” que vieram do estrangeiro para trabalhar em Angola, estava “bem”. Mas o que é, afinal, estar bem?
E já agora, quem são estes manos que voltam e que estão “bem”? E os que nunca saíram, estão “bem”? Porque é que eu nunca falo deles?
Vamos contextualizar. Na minha geração, a malta que nasceu entre os anos 80 e 90, existem três Angolas. A primeira é a dos que viveram ou se formaram fora e que hoje estão “estáveis” ou “good”. Estar “estável” significa ter um bom emprego e pagar as contas. Estar “good” é fazer tudo o que o “estável” faz, mas ainda ir de férias para o Dubai. Por norma, são os que os seus antecessores já eram “goods”.
Exemplo prático: a minha amiga Tânia. Cresceu em Portugal com a mãe, em São António dos Cavaleiros. Regressou a Angola em 2013, já passou pelas melhores empresas, já tentou empreender na área do marketing, mas nunca alavancou. Apesar de tudo, sempre fez muitas contas e nunca foi vista como uma substituta para o “diretor white boy” de uma das empresas. A Tânia é uma “estável”, com pais que lutaram muito para que ela o fosse.
Depois, temos o quase-amigo João. Nasceu em Luanda, pai funcionário de uma petrolífera, mudou-se para os Estados Unidos aos 6 ou 7 anos e viveu lá até aos 25. Voltou para Angola também em 2013, empreendeu nos negócios do turismo com várias ideias, mas com a mesma “âncora”, e hoje é dono de um restaurante de 5 estrelas, onde a mãe é a principal investidora. O Cláudio está nos “goods”.
E, por fim, temos o Venâncio. Foi meu vizinho no Bairro Popular, tem a mesma idade que eu, ensino médio (ou secundário, se preferirem) completo e andou dois anos na faculdade Agostinho Neto, em Relações Públicas. Começou como “operativo” a tratar de documentos para uma empresa portuguesa. O “boss” branco gostava muito dele e ele passou a ser o assessor, o braço direito, o motorista. Ganhava cerca de 600 dólares, ao câmbio da altura. O Venâncio fazia de tudo: arranjava as “facilidades”, as “catadoras” e tudo o mais. Com a queda do antigo regime dos Santos, o branco que promoveu o Venâncio de relações públicas para motorista foi-se embora. Hoje, o Venâncio já foi motorista da empresa onde trabalhou a Tânia e é o motorista do restaurante do Cláudio. O Venâncio está na categoria dos que estão “fodidos”.
É assim que eu vejo Angola, dividida em três mundos. E a geração que nasceu entre 1990 e 1999 não é muito diferente. Também se divide nos que estão “good” (que usam a sua vivência no estrangeiro para tirar dinheiro aos “estáveis” que querem estar “goods”) e nos “fodidos”, que acompanham a vida dos outros através das redes sociais.
Foram 10 dias de observação, onde vi de tudo. E, sobretudo, vi a bolha a que pertenço: a dos “estáveis” que nasceram no berço dos “fodidos”. Não me posso queixar muito de Angola. Vim para cá para atividades profissionais e com a ideia de tratar de alguns documentos que, através do consulado em Portugal, é quase impossível. Mas, perante a dificuldade, lembrei-me que nunca fui eu a tratar de nada. Sempre arranjei um “operativo” que fizesse por mim. E, por não conseguir, sempre estive disposto a “molhar a mão” de alguém para que as coisas acontecessem o mais rápido possível. Logo, faço parte do sistema que corrompe.
O tour organizado pelos miúdos do The Creative Hub deu para perceber que existem muitas Fátimas Acioli (a personagem ambiciosa da novela “Vale Tudo”) e muitos Césares Ribeiro (o personagem do Cauã Reymond na mesma novela). Muitos deles podem ser vistos na Teimosa da Banda - o novo spot mais concorrido da cidade. Angola, para mim, foi um turbilhão de emoções. Boas e más. De arrependimento e de alívio. E de muita inveja, da boa e da má.
E no meio deste turbilhão, fui à casa onde vivi, no Bairro Popular. A casa que hoje é do meu tio, o homem que, durante anos, foi o meu capataz. Um senhor “bom vivan”, cheio de lábia, de mulheres à volta, bonito, que usava polos da Lacoste e perfume Carolina Herrera 212. E eu? Eu era uma espécie de Kunta Kinte, versão angolana. Tinha de lavar o carro cheio de lama, abrir o portão de madrugada, não importava a que horas ele chegasse, e mais mil merdas que a minha memória, felizmente, já apagou.
Chegar à “minha” casa, ou melhor, à casa dos meus avós, e ver aquele homem de um metro e oitenta, agora velho, feio, quase sem dentes e com um AVC nas costas, não me causou grande impacto. Mas entrar em casa e ver que tudo o que os meus avós deixaram há 24 anos está exatamente igual... isso sim, bateu forte. A sala modesta, com as paredes pintadas num tom de amarelo-pêssego. A televisão de plasma, enorme, e por baixo, um móvel metálico com leitores de DVD, colunas e cabos à vista. A ventoinha azul, de pé. O carrinho de madeira com rodinhas a servir de aparador. O quarto com a cama de casal e os lençóis azuis. O toucador antigo com o espelho lascado. O chão de mosaico verde-claro. O tapete oriental. Parecia que o tempo tinha parado. Que os meus avós ainda estavam vivos e que eu tinha voltado aos meus 15 anos, no início dos anos 2000. Mas não. É casa onde o meu tio vive há mais de 20 anos e onde nunca mudou nada. Nem uma obra, nem uma pintura, nem uma melhoria. Até a cor das paredes é a mesma.
Sim, Luanda foi estranha. E, honestamente, espero não voltar nos próximos 5 anos. Apesar de achar que está na hora de a BANTUMEN ter lá, oficialmente, os seus escritórios.
Entretanto, já estou em Lisboa, a preparar a 4.ª edição do MIA – Mês da Identidade Africana, na Casa do Comum, no Bairro Alto. No dia 5 de novembro, às 18h30, inauguramos a exposição “Ecos da Memória”, com curadoria da Ivanova Araújo. A mostra, de entrada livre, assinala o meio século das independências de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, e reúne quatro artistas que exploram o passado como espelho do presente. Apareçam.
Este episódio deixou-me meio atoa, com uma sensação de impotência. Sinto que não fiz a minha parte para ajudar o meu país. E que é mais fácil continuar a viver a minha vida pacata em Paris, a fingir que Angola não existe. Afinal, não tenho nada que me prenda lá. A minha filha mais velha está no Reino Unido, a mais nova em França, sou órfão de pai e mãe, filho único, e já nem acompanho o Petro de Luanda no Girabola.
E assim, caros leitores, encerramos mais uma viagem pelos labirintos da BANTUMEN. Se esta travessia vos despertou curiosidade, vos arrancou um sorriso ou vos levou a refletir, então a nossa missão está cumprida. Mas a aventura não precisa de parar aqui. Se querem continuar a explorar os bastidores, a rir das nossas (e das vossas) peripécias e a integrar esta comunidade que se recusa a ser rotulada, o convite está lançado: subscrevam a newsletter OFF-STAGE. É gratuita, é verdade, mas o vosso apoio de qualquer forma que se manifeste — é o combustível que nos motiva a continuar. Juntem-se a nós, porque a melhor versão da BANTUMEN está sempre em construção, e vocês são parte essencial dessa criação.





